Mas, provavelmente assim como eu não conhecia, você também deve conhecer muito pouco sobre a China.
A maioria das pessoas, quando pensa na China, associa o país a um tipo de grande parque fabril, que produz sob demanda do ocidente em fábricas repletas de trabalhadores em condições desumanas. Ao pensar no povo chinês, a primeira lembrança que vem à tona para muitos de nós é um mar de pessoas em filas de lojas de luxo na Europa.
Seja sincero e me diga: o que você realmente sabe sobre o sistema político do país? E sobre seus aspectos culturais? E as pretensões do país no cenário internacional?
Provavelmente, você não possui convicções sobre nenhuma das questões acima, certo?
A verdade é que somos todos muito mal informados quando o assunto é China. Preferimos nos basear em estereótipos, como os que citei anteriormente, no lugar de nos aprofundarmos no assunto.
Bem, assumindo o tamanho da minha ignorância em relação ao país, decidi participar de uma missão orquestrada pela StartSe, com foco no varejo de lá. Já havia, em dezembro de 2017, estado com eles no Vale do Silício, experiência que relatei neste artigo.
Se ao conhecer o Vale e seu ecossistema de inovação eu tive em choque, posso afirmar que ir à China é 100 vezes mais intenso. Não seria exagero dizer que são propostas diametralmente opostas!
Enquanto no Vale todos se orgulham da liberdade, individualidade, diversidade e tolerância ao fracasso, a China está mais para um grande colégio militar, governado por um partido em que no topo está o todo poderoso presidente, Xi Jinping.
Se por um lado os americanos se acham no direito de ter privacidade de dados, os chineses, criados num regime comunista onde o coletivo vale muito mais que o individual, pouco se importam em cedê-los a quem quer que seja. E o fazem, às toneladas, 7 dias por semana, 24 horas por dia.
São mais de 170 milhões de câmeras espalhadas pelas ruas das cidades, que em menos de 10 minutos podem localizar qualquer indivíduo por meio de tecnologia de reconhecimento facial. Mas isso não é nada se comparado aos trilhões de translações de dados que ocorrem a cada dia nas plataformas digitais dos superaplicativos chineses (falaremos mais deles a seguir).
Na China, a internet é fechada e o setor de tecnologia é dominado pelo BAT, acrônimo para nomear a junção dos três titãs de tecnologia do país: Baidu, Alibaba e Tencent.
Assim como ocorre em todos os grandes negócios na China, e isso é algo importante de ser compreendido em relação às políticas do país, estas empresas foram escolhidas pelo governo chinês para consolidarem um setor, no caso, o de tecnologia. Elas possuem ramificações que se estendem a redes sociais, sistemas de pagamento, games e muito mais. Veja no gráfico abaixo as principais áreas de atuação dessas gigantes, bem como sua participação em cada um deles.
Você pode estar se perguntando: por que o governo chinês está por trás dessas empresas?
Basicamente, o governo está interessado nos dados obtidos por elas, e faz com eles o que bem entender. Isso torna o Partido Comunista da China, que governa o país desde 1948, onisciente, onipresente e onipotente. O governo se beneficia de uma característica peculiar do povo chinês: a sua velocidade de adoção de novas tecnologias, fenômeno intensificado nos últimos 6 anos, período em que houve uma verdadeira revolução digital na China.
Mais de 25% do comércio na China se dá no online. Os 75% restantes, mesmo ocorrendo no off-line, quase em sua totalidade são realizados por meio de smartphones. É muito simples: basta escanear um QR Code. Todas as lojas, da mais luxuosa até o “boteco da esquina”, possuem esse elemento impresso em algum local, muitas vezes, na própria fachada.
Ninguém me contou isso. Talvez, se tivesse ouvido, e não presenciado, não teria acreditado. Mas vi, pessoalmente, e é impressionante. As vezes que tentei pagar alguma coisa com dinheiro ou mesmo com cartão de crédito, tive que me dirigir a um local específico, onde um chinês mal-humorado me atendeu sem a menor boa vontade. Foi constrangedor, me senti um homem das cavernas.
Bem, até aqui, este texto tratou sobre três aspectos fundamentais para você compreender a China e o varejo que está surgindo por lá. Vamos recapitulá-los.
Primeiro aspecto: o papel e a influência do governo, que assim como ocorre num exército, define “o que”, “o como” e “o porquê” as coisas vão acontecer. Você simplesmente não tem escolha: precisa obedecer o general.
Segundo aspecto: a rápida adoção pelo povo chinês das novas tecnologias, que lhe caíram como uma luva para lhe dar entretenimento e sensação de liberdade, ainda que totalmente vigiada.
Terceiro aspecto: a amálgama que conecta tudo isso, permitindo às empresas e ao governo reforçarem o sistema de controle e o consumo desenfreado: a Inteligência Artificial (IA).
Dos três aspectos, o mais relevante para o projeto de dominação chinesa é a IA. Os dados valem mais do que qualquer coisa, e o governo não mede esforços para obtê-los, investindo fortemente em empresas capazes de capturá-los, como as que compõem o BAT.
Cheguei até esse ponto pois precisava passar a você um panorama geral da China antes de falar sobre o varejo propriamente dito.
Para entender o que significa o New Retail, você precisa tentar ver o mundo pela ótica de um chinês. Em primeiro lugar, esqueça os meios de pagamentos convencionais que você está habituado a utilizar: cartão de crédito e dinheiro. A China evoluiu do dinheiro, que de tão utilizado anteriormente era gosmento e sujo, direto para o pagamento online, sem ter passado pelo cartão de crédito.
A moeda circulava tanto pois eram raros os chineses que tinham conta no banco. Tudo era informal, com dinheiro impresso sendo largamente adotado. Aí, veio a revolução digital, que a partir de 2010 mudou profundamente os hábitos do povo. Percebendo nessa mudança de comportamento uma oportunidade, o Alibaba, que já ditava as regras do comércio eletrônico, criou seu sistema de pagamento, o Alipay.
Mas ainda faltava uma variável importante na equação do New Retail: tornar fácil e intuitivo o processo de pagamento, com “fricção” zero. Foi aí que o QR Code, que já citei anteriormente, passou a ter papel fundamental. Mas não é somente no varejo tradicional que ele é usado. Você vai a um restaurante, senta-se à mesa, e ao invés de esperar um garçom lhe atender, escanei o QR Code que se encontra ali adesivado e assim acessa o menu e faz seu pedido.
Ou então, você está no seu trabalho, sente fome, vai até o corredor e lá está uma máquina repleta de lanches. Mais uma vez, basta escanear o QR Code da porta da máquina e comprar com seus créditos o que bem desejar.
Em cada uma das situações descritas acima, o Shopper chinês esteve, simultaneamente, interagindo no ambiente on e off-line. A esse formato de interação, damos o nome de O2O (on to off-line), sem qualquer distinção entre os ambientes.
O conceito de O2O é fundamental de ser compreendido se você pretende entender o New Retail.
Outro, tão importante quanto ele, já citado anteriormente, explicarei a seguir: os superaplicativos, ou simplesmente super-apps.
Antes de embarcar para a China, me disseram para eu baixar dois aplicativos se desejasse me comunicar com o mundo (diga-se, com o ocidente): o WeChat e o VPN.
O primeiro é conhecido como o super aplicativo Chinês. Falarei dele em seguida. Já o segundo (VPN), é um aplicativo que permite que você acesse as redes sociais e sites banidos da China, como Instagram, FaceBook e Google. Bom, isso tudo já mexe muito com você, pois ao usar o VPN, a sensação é de estarmos trapaceando o controle do governo chinês, e posso te garantir, é melhor não comprar briga com eles!
Voltando à questão do WeChat, o que faz dele tão poderoso?
Diferentemente do que ocorre no Brasil e outros países do ocidente, onde temos um App para cada finalidade, o WeChat possui todos em uma única plataforma! Ele é um tipo de serviço de mensagens instantânea, misturado com rede social, e-commerce, games e tudo mais que você puder imaginar. É graças aos miniprograms (uma espécie de aplicativo, mas muito mais barata e rápida de fazer), que a plataforma do WeChat permite tantas funções simultâneas.
Você pode estar se perguntando: por que o FaceBook não permite funções similares a essas? Vou usar um exemplo para te explicar.
Imagine se por acaso o FaceBook passasse a oferecer serviços de pagamento. Certamente, seria retaliado por bancos, que fariam todo lobby possível para impedir que seus clientes deixassem seus ecossistemas para realizar suas demandas na rede social do Mark Zuckerberg. Mas na China, isso não tem problema: quem controla os bancos, e também o WeChat, é o governo. E para ele, é muito melhor que toda vida do chinês esteja registrada em um único local, criando assim o que eles chamam de “super id”, ou seja, sua identidade digital baseada no cruzamento de todos os dados produzidos pelas suas interações sociais, sejam elas on, sejam elas off-line.
O chinês, em especial o jovem, é viciado no WeChat. Também, pudera: ele pode obter por lá tudo que deseja, a hora que bem entender. Fiquei sabendo que existem locais de encontro onde os jovens vão e, ao invés de conversarem, sentam-se uns ao lado dos outros e ficam trocando mensagens pelo WeChat.
É um mundo assustador esse, não acha?
Ainda tem mais…
Como o WeChat é um mundo à parte, as marcas precisam estar lá. E o fazem por meio de pesados investimentos em campanhas de marketing. Muitas empresas simplesmente eliminaram os investimentos em ATL (mídias tradicionais) para migrar 100% para o digital. Mas não pense que basta criar banners ou fazer campanhas de mídia programática. Para ter relevância no online, é preciso fazer algo que vá além da propaganda. Nesse momento, existe mais um conceito que você deve conhecer para entender o New Retail: os KOL´s (key opinion leaders).
Essas celebridades são febre entre os jovens, e ao invés de serem somente contratadas pelas marcas (como ocorre com os influenciadores), essas pessoas tem um status social tão forte que possuem suas próprias marcas e vendem seus produtos nas suas interações digitais.
É muito comum os KOL´s realizarem lives e, durante sua interação com o público, venderem ali mesmo seus produtos, ou mesmo receberem pequenas doações de dinheiro por meio dos red packets. Na China, os envelopes vermelhos fazem parte de uma tradição. Eles contêm notas de dinheiro e são distribuídos em ocasiões especiais. Essa tradição se mantem mais ativa que nunca, mas por meio do digital.
Levando em consideração tudo que escrevi até aqui, fica claro o seguinte: não existe a menor chance de competir no varejo na China se o negócio não estiver digitalizado. Caso contrário, a empresa estará fora do jogo. É possível fazer essa migração por meio da criação de um aplicativo, ou ingressando nos superaplicativos com a criação de um miniprogram, ou ainda, contratar os serviços das gigantes digitais para utilizarem seus serviços e assim estar visível e disponível para o Shopper chinês.
O grande dilema reside no seguinte: salvo se o varejista criar seu próprio APP ou um e-commerce, nas outras duas opções citadas anteriormente, ele fatalmente estará cedendo os dados dos seus Shoppers aos BATs. Isso o torna frágil, pois ao ter acesso aos dados de seus clientes, os BATs podem assediá-los a qualquer momento com ofertas concorrentes, plenamente aderentes às suas necessidades e perfil.
Sentindo-se numa selva sem leis? Bem, você está na China, o que esperava?
Em suma, as empresas varejistas nascidas antes da revolução digital estão sob grande ameaça, e precisam esforçar-se mais do que nunca para digitalizar seu negócio e criar atratividade para o seu ecossistema, onde a loja física deve ser vista como mais um ponto de interação e venda, e não o único!
Já as marcas surgidas na era digital, conhecidas como DNVB (Digitally Native Vertical Brand), possuem uma grande vantagem competitiva por já terem ocupado uma posição relevante nos hábitos de compra do Shopper chinês e agora usam o PDV físico para agregar valor onde antes não conseguiam por estarem limitadas ao online.
O Hema Supermarket (varejo do Alibaba) percebeu que os chineses eram desconfiados na hora de comprar produtos frescos (diga-se, vivos) e criou uma loja onde eles estão disponíveis e podem ser comprados e consumidos lá. Uma vez que o Shopper ganhou confiança com essa experiência, ele passa a pedir em sua casa, e recebe o bicho vivo e mais tudo que desejar em apenas 20 minutos. Faz isso enquanto se desloca do trabalho para casa e lá, ao chegar, prepara seu jantar. É rápido, prático, seguro, eficiente: sem qualquer fricção.
Isso só é possível graças à plataforma digital oferecida pela Alibaba, bem como sua automação e logística extremamente eficiente. Basta você dar uma volta em Xangai para observar milhares de bicicletas e motinhos, circulando apressadamente nas ruas e (pasmem) calçadas, levando ao Shopper chinês qualquer coisa que você possa imaginar.
Bem diferente daquela que vivemos quando temos que ir a uma loja, estacionar o carro, procurar os produtos que desejamos, caminhar pela loja em áreas que não desejamos, ficarmos na fila, pagarmos, voltarmos ao carro, nos deslocarmos até nossas casas e descarregarmos as encomendas. Tudo isso nos tira um bem precioso, que o chinês tem pouco: tempo.
Enquanto as motinhos de Xangai compõem a sinfonia de um novo mundo, ao fundo, de modo discreto, mas sempre presente, a mão vermelha do partido comunista observa em silêncio, concretizando seu plano de controle. E assim, como um prisioneiro que não percebe as grades, pois iludidos estão seus sentidos diante da euforia do consumo, o povo chinês vai movendo a engrenagem desse paradoxal sistema, onde comunismo e capitalismo formaram uma simbiose quase que perfeita.
Aparentemente, não faz sentido algum. E por que deveria de ter?
Como diz um provérbio chinês, “não importa a cor do gato, desde que mate o rato”.
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